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Polícia Civil do Piauí
Reportagem - Habeas corpus: remédio constitucional ou panaceia universal?
23/10/2012 - 08:53  
  
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Instituto secular, o habeas corpus (HC) tutela o direito talvez mais essencial ao homem: sua liberdade física. Pelo menos, é assim que foi concebido. Ao longo do tempo, esse remédio constitucional teve aplicação alargada, chegando a cuidar, com ampla flexibilidade procedimental, de ilegalidades que nem remotamente afetam a liberdade. Mas, como dizia Paracelso há 500 anos, a dose diferencia o remédio do veneno. E o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendido que é hora de corrigir rumos. Confira nesta reportagem.

Na biblioteca do Tribunal, há referências a decisões nacionais datadas de 1834 sobre o instituto. Desde então, o alcance de seu cabimento foi progressivamente ampliado. Mais recentemente, porém, tanto o STJ quanto o Supremo Tribunal Federal (STF) voltaram a restringir sua aplicação, de modo a restabelecer eficiência e racionalidade ao sistema.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em ofício encaminhado ao STF, lamentou a nova interpretação. Conforme o documento, reproduzido pela imprensa, a OAB entende que a limitação ao alcance do “instituto tão valioso e caro às liberdades individuais e à cidadania, que acaba por reduzir o princípio constitucional da presunção de inocência”, despreza “o procedimento de raízes históricas até então adotado pela corte”.

Redemocratização

Para o ministro Marco Aurélio Bellizze, a extensão que a jurisprudência reconheceu ao habeas corpus após a Constituição de 1988 deve-se a um reflexo do período de exceção que a antecedeu. “Na intenção de proteger o cidadão, foi ampliando, aos poucos, o cabimento do habeas corpus, a fim de salvaguardar direitos que apenas indiretamente poderiam refletir na liberdade de locomoção”, ponderou o relator no HC 216.882.

Segundo Bellizze, o habeas corpus passou progressivamente a tutelar hipóteses sem qualquer risco de prisão, como a simples instauração de inquérito policial. Conforme o ministro, ele “tornou-se o remédio constitucional adequado para atacar, a qualquer tempo, todos os atos da persecução criminal”.

Do número 2...

Já no Habeas Corpus 2, julgado pelo STJ em 14 de junho de 1989, essa ampliação era destacada. O HC foi conhecido como substitutivo de “recurso necessário”, mas negado. O ministro Cid Flaquer Scartezzini apontava que a nova Constituição, diferentemente da anterior, instituída pela emenda de 1969, não impedia de forma expressa o conhecimento do habeas corpus originário em substituição ao recurso devido.

O relator justificava o conhecimento não pela finalidade do HC, que seria a proteção à liberdade, mas por sua agilidade. “O que o distingue é a prontidão e celeridade com que pode restituir a liberdade àquele que é vítima do referido constrangimento ilegal”, afirmou.

...ao 260.000

O STJ se aproxima em 2012, passados 24 anos de sua criação, do HC de número 260 mil. Em 2011, eram 200 mil. “A questão preocupante está no fato de que metade das ações chegou à Corte Superior nos últimos três anos”, avalia o ministro Bellizze, referindo-se ainda aos dados do ano passado.

Só em 2012, até setembro, foram mais de 25 mil novos HCs pedidos, quase três mil só nesse último mês. Nas três primeiras semanas de outubro, já são mais de duas mil autuações de HCs. É quase o mesmo número de Recursos em Habeas Corpus (RHCs) registrado em 2012: 2.380 recursos.

Para Bellizze, a banalização do HC como meio de impugnação ordinária, mesmo sem quaisquer riscos concretos e imediatos ao direito de ir, vir e ficar, inviabiliza a proteção judicial efetiva desses mesmos direitos. Dessa forma, avalia o ministro, levando os processos em que essa tutela se faça realmente necessária a ter uma duração indefinida. Segundo ele, essa situação compromete de modo decisivo a dignidade humana.

“As vias recursais ordinárias passaram a ser atravessadas por incontáveis possibilidades de dedução de insurgências pela impetração do writ [a ordem de habeas corpus], cujas origens me parece terem sido esquecidas, sobrecarregando os tribunais, desvirtuando a racionalidade do ordenamento jurídico e a funcionalidade do sistema recursal”, afirma Bellizze.

Origens lembradas

Em 1900, Marcellino Coelho definia assim, com surpreendente atualidade, o instituto: “[O habeas corpus] não é um recurso no estrito sentido judiciário, empregado como meio de reformar decisão pronunciada. É um novo processo, de ordem jurídica, de natureza sumária, diverso do ato que o originou. É um recurso extraordinário a uma violência dada, na falta de outro que a faça desaparecer, ou a evite.”

O autor da obra Do Habeas Corpus explica, usando decisão tomada pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1883, a diferença entre a decisão de habeas corpus, que diz respeito apenas ao direito à liberdade do indivíduo, e as matérias de fundo: sua absolvição ou condenação, ou ainda o efetivo ilícito civil, administrativo ou político supostamente cometido.

Segundo Coelho, não haveria qualquer confusão entre o direito a liberdade tutelado no habeas corpus e a culpa ou inocência do réu, cuja avaliação compete a processo completamente diverso.

De homine libero exhibendo

Muito antes, em Roma, o instituto já existia sob diversas formas. Uma delas, o interdictum de homine libero exhibendo, exigia daquele que supostamente detinha como escravo um homem livre que o apresentasse a uma corte.

Segundo o Encyclopedic Dictionary of Roman Law, de modo similar ao expresso por Coelho, a medida servia apenas para avaliar o estado de liberdade da pessoa detida: se era escravo ou homem livre. Sendo considerado o segundo, não poderia ser mantido por seu detentor, mesmo que ele próprio desejasse permanecer detido por conta de uma obrigação qualquer.

Habeas corpus

O termo habeas corpus nasceu na Inglaterra. Era uma ordem dirigida ao xerife mandando que levasse a pessoa determinada a certo lugar em certa hora. Conforme Coelho, o habeas é uma instituição inglesa, consagrada na Magna Carta daquele país de 1215. Porém, somente em 1679, a previsão constitucional inglesa foi regulada em lei, estabelecendo sua aplicação mesmo contra ordens de prisão emitidas pelo rei.

O instituto foi posteriormente adaptado por americanos, argentinos e brasileiros. Mas, já em 1900, sua extensão era polêmica. “O nosso objetivo é provar que devemos aceitar a instituição como ela é, em seus desenvolvimentos, e não trucidá-la ou enxertá-la com teorias e jurisprudência esdrúxula”, afirmava o autor.

Recurso, ação e liberdades

O mesmo texto discutia, inclusive, o caráter recursal ou originário do habeas corpus diante do Supremo, não só do brasileiro, mas também do americano. Discutia também o alcance da tutela, se das liberdades civis mais amplas, ou apenas à de ir e vir. As discussões atravessaram as décadas e alcançaram a jurisprudência atual das cortes superiores.

Em 1900, o debate era em torno da expressão constitucional “dar-se-á o habeas corpus, sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder”, discutindo-se qual o tipo de violência estaria contido na previsão.

O texto de 1988 foi mais claro: “Conceder-se-á habeas-corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.” Também previu ações de garantia de outros direitos, como o mandado de segurança. Isso, porém, só mudou o debate, sem resolvê-lo. 

Em voto recente, o ministro Marco Aurélio Bellizze apontou que essa tendência se consolidou na jurisprudência com a reforma constitucional de 1926. E foi efetivada com o texto de 1934, que criou o mandado de segurança, com processamento similar ao do habeas corpus, para tutelar outros direitos que não as ameaças à liberdade. 

Fonte: Superior Tribunal de Justiça
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