O modelo de Justiça adotado pelo Brasil, tipicamente alinhado ao sistema jurídico baseado na civil law, sobrecarrega a figura de Advogados, Magistrados e Promotores de Justiça no papel de promover a retribuição da pena diante da prática delituosa.
Nossa opção pelo arquétipo da Justiça Retributiva fez com que chegássemos ao século XXI com, aproximadamente, 100 ( cem) milhões de processos.
Dispomos de cinco Justiças ( duas comuns e três especializadas), de quádruplo grau de jurisdição ( juiz singular, segunda instância, Tribunais Superiores e o Supremo Tribunal Federal) onde os processos podem alcançar a duração de 10 a 20 anos para transitar em julgado.
Embora seja inquestionável a qualidade e boa vontade de nossos valorosos Magistrados e Promotores de Justiça, a cultura da excessiva judicialização associada à enorme quantidade de recursos e de execuções de sentenças, tornam o aparato estatal extremamente burocrático, moroso e de alto custo.
Como é cediço, a primeira tentativa de desafogar a Justiça Comum foi a criação dos Juizados Especiais, entretanto, hodiernamente, até mesmo estes se encontram congestionados e burocratizados.
Com elevadas taxas de crescimento do volume de processos e elevada média de prazo de espera entre as audiências, o litigante não dispõe de tempo para expor as verdadeiras causas que deram origem ao conflito.
Consequentemente , diante de tal quadro, a intervenção estatal se torna puramente técnica, formalista, superficial e não tem o condão de dissolver a essência do conflito com definitividade, pois apenas trabalhou com os efeitos.
“ Uma lide mal explorada preserva sua essência e isto, provavelmente, implicará em mais desarmonias e futuros problemas”( grifo nosso).
Então, a Justiça Pública percebeu a necessidade de renovação da cultura jurídica nacional e passou a adotar fórmulas que valorizassem a participação direta do interessado no encaminhamento da relação.
Desta arte, centros de conciliação foram criados e projetos de pacificação e harmonização social foram implementados. É digno de registro os Centros de Conciliação Extrajudicial e de Cidadania do Tribunal de Justiça de São Paulo e o projeto OAB concilia.
Um dado interessante é que basta um olhar cuidadoso pela ordem jurídica pátria e nos será revelado que não é de agora a exortação legislativa para as iniciativas de resolução de conflitos baseadas na pacificação social e na menor judicialização.
As Ordenações Filipinas já ressaltavam a importância do acordo entre as partes e não constituía obstáculo aos “ Termos de Bem Viver”.
A Constituição Federal de 1988 tanto em seu preâmbulo, quanto em seu artigo. 98, inciso I ressalta o valor da solução pacífica das controvérsias e autoriza a ação de profissionais leigos na esfera judicial.
A Lei Nº 9.307/1996 regulamentou a prática da arbitragem e a Resolução Nº 26 de 28/07/1999 do Conselho Econômico e Social da ONU promoveu os métodos alternativos de solução de conflitos.
A Resolução Nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça e a Lei Nº 13.105/2015 ( Novo Código de Processo Civil) também prestigiaram os métodos consensuais de solução de controvérsias.
Mas, bem antes do Estado formalmente criar espaços públicos de resolução democrática das lides, já podíamos contar com um profissional que já operava de forma empírica com tais ferramentas.
Esse profissional que dispunha de saber jurídico, proximidade da sociedade, além de sensibilidade e sabedoria talhadas pelo diário exercício do ofício era o Delegado de Polícia Civil.
A intuição e a experiência ensinavam que embora demandasse menos tempo e energia a elaboração de um procedimento policial a ser enviado à Justiça, uma lide mal trabalhada não esgotava a tutela policial.
Investir mais um pouco de tempo, paciência, pacificar e harmonizar eram as palavras de ordem que resultavam na lavratura de “ “Termos de Bem Viver”, “ Termos de Paz”, “ Comunicações de Fato Atípico” e etc.
Essa escola prática de paz transmutou inúmeras ameaças ou ofensas contra a honra em elogios e amizades duradouras entre as partes.
Seguindo pela senda epistemológica, que do empirismo à ciência conduz, renomados pesquisadores e professores reunidos em comissão, condensaram toda a experiência policial na presidência de audiências de composição e criaram o projeto NECRIM (Núcleo Especial Criminal de Mediação de Conflitos) da Polícia Civil do Estado de São Paulo.
Nas palavras do Dr. Paulo Afonso Bicudo, Delegado de Polícia Civil e Diretor da Academia da Polícia Civil do Estado de São Paulo:
“Os Núcleos Especiais Criminais ( NECRIMs) são órgãos de pacificação social que estão sendo implantados pela Polícia Civil do Estado de São Paulo, para atuarem de forma especializada na apuração de delitos de menor potencial ofensivo de ação penal privada ou pública condicionada à representação do ofendido, mediante audiência de conciliação presidida pelo Delegado de Polícia, formalizando-se a composição pré-processual em Termo de Composição de Polícia Judiciária ( TCPJ), o qual é encartado ao final do correspondente Termo Circunstanciado, antes de ser submetido a homologação pelo Poder Judiciário. Quando o Delegado de Polícia ontem sucesso na mediação de conflito, as partes se compõem e a vítima renuncia ao direito de representação ou de oferecimento de queixa, retirando, portanto, a necessária condição de procedibilidade para a continuidade do procedimento de polícia judiciária destinado à apuração criminal bem como para o início da fase processual”.
O eixo central do trabalho é a filosofia de polícia comunitária, a prática da Justiça Restaurativa, o empoderamento das partes, as práticas alternativas de solução de conflitos e as ações de conduzem à convivência social, harmônica e pacífica.
Segundo a doutrina Policial Civil de Pacificação Social do Núcleo Especial Criminal de Mediação de Conflitos, os principias princípios aplicáveis ao NECRIM são:
1. Eficiência. Equipado com recursos materiais e humanos diferenciados se busca a resolutividade e o não surgimento de novos conflitos;
2. Celeridade. Agilidade nas ações;
3. Economia Processual. Procurar solucionar a questão na audiência de conciliação, logicamente respeitando o tempo que a especificidade de cada caso exige;
4. Simplicidade. Agir com humildade, clareza e objetividade;
5. Informalidade. Aproximar-se das partes, ser acessível, com serenidade, evitando excesso de formalismos;
6. Oralidade. Antes da lavratura dos termos, ouvir as partes, verbalizar, dialogar, ajudar a criar propostas;
7. Confidencialidade. Manter sigilo do ocorrido nas audiências preservando as questões pessoais e de natureza íntima;
8. Competência. O policial deve possuir perfil e afinidade com a filosofia de polícia comunitária, ter concluído cursos de mediação de conflitos e participar de formação periódica e continuada;
9. Imparcialidade. O mediador não pode aceitar benesses das partes e deve agir sem preferências ou preconceitos;
10. Neutralidade. Significa que deve respeitar e considerar os pontos de vista das partes;
11. Independência e autonomia. O mediador não está obrigado a formalizar acordos ilegais, inexequíveis ou fruto de qualquer espécie de pressão. Podendo, inclusive, suspender audiências;
12. Informação. As partes devem tomar ciência dos procedimentos adotados pelo NECRIM, dos métodos de trabalho, das consequências de suas decisões e de todas as informações necessárias.
13. Autonomia da vontade. As decisões são construídas pelas partes de forma livre.
14. Ausência de obrigação de resultado. A tutela da mediação não significa forçar as partes a um acordo;
15. Desvinculação da profissão de origem. O Delegado de Polícia Civil deve despir-se da potestade da Autoridade Policial e incorporar o papel de conciliador, de mediador, ou seja, de um facilitador de diálogo;
16. Teste de realidade. Ter o cuidado de saber se os envolvidos entenderam realmente as consequências das promessas firmadas;
17. Reparação dos danos sofridos pela vítima. Nos termos da Lei nº 9.099/1995 a reparação dos danos sofridos pela vítima é causa de extinção da punibilidade.
O primeiro Termo de Composição Preliminar foi lavrado pela Polícia Civil do Estado de São Paulo em 23 de junho de 2003 e encaminhado ao Fórum da Comarca de Franca-SP.
O Promotor de Justiça Dr. Augusto Soares de Arruda, verificando o teor do Termo de Composição Preliminar que indicava o acordo entre as partes, opinou pelo arquivamento dos autos, no que foi deferido pelo MM. Juiz de Direito da Comarca de Franca-SP, Dr. Luis Pinho Sampaio.
Ressalte-se que nos dois primeiros anos de funcionamento dos NECRIMs a média de conciliação foi de 93% considerando a totalidade das audiências realizadas e nos anos de 2013 e 2014, a média alcançada foi de 91% de acordos pelos 35 NECRIMs instalados por São Paulo.
Conclusões.
Os exemplos exitosos dos NECRIMs do estado de São Paulo representam sementes de paz que devem ser lançadas por todo nosso Brasil.
Aquele que não vê que o broto da paz está em seu coração, pede para que outrem lhe dê paz, agindo assim, não deseja a paz profundamente.
Quem de fato anseia pela paz a constrói juntamente com o outro.
Reformular antigas fórmulas e práticas é dar espaço, tempo e oportunidade ao novo.
Ultrapassar os limites traçados pelo formalismo é transmutar poder e vaidade em humildade e colaboração.
Fomentar a democratização, o procedimento participativo, lançar luzes, enfrentar desafios de forma construtiva, fortalecer laços sociais, identificar as verdadeiras causas do conflito e realçar a cooperação.
Abandonar a superfície, focar na essência, aprofundar a consciência e libertar as pessoas das amarras do conflito e das disputas futuras.
Fontes Bibliográficas:
Acadepol. Núcleo Especial Criminal de Mediação de Conflitos. Doutrina Policial Civil de Pacificação Social. V1 ( agosto-2015), 2ª ed.rev. atual e amp-São Paulo-SP;
Guilherme, Luiz Fernando do Vale de. Manual dos MESCs. Editora Manole;
Muzskat, Malvina Ester. Mediação de conflitos.Pacificando e prevenindo a violência. 3ª ed-2003;
Souza, Zoraide Amaral de. Arbitragem, conciliação e mediação nos conflitos. Ed. LTr;
Zehr Howard. Justiça Restaurativa. Teoria e Prática. Ed. Palas Athena;